“A Nova Onda do Imperador” — A “lhama” que existe dentro de nós.
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“A Nova Onda do Imperador” não foi uma animação que marcou época como “Rei Leão”, “Toy Story” e outros clássicos da Disney da década de 90 e início de 2000. Este desenho ficou um pouco perdido numa “entressafra” das animações 2D e 3D da Disney. Junto dele poderia citar “O Planeta do Tesouro” (2000) e “Atlantis: O Reino Perdido” (2001).
Kuzco, o protagonista, é o imperador de uma antiga civilização que vive no alto das montanhas. Ele é um típico governante que é considerado “nobre” apenas por sua posição de poder, mas não por seu espírito: vive na ostentação, não sai da sua bolha e detêm grandes poderes na sua mão, porém, não tem a mínima noção da realidade do seu próprio povo e nem faz questão de ter. Enquanto a comida chegar a sua mesa, seus empregados estarem de pé, seus soldados a postos e todos os seus pedidos forem realizados, tudo está bem, só quem não pode estar um milímetro mal é ele.
Logo no início do filme, o protagonista fala diretamente conosco e mostra como ele é um Imperador poderoso, que tem tudo que deseja em suas mãos, desde as melhores comidas, empregados que o abanam e dão comida na sua boca até soldados que o defenderão de qualquer ameaça. Kuzco não só é imperador, ele faz questão de lembrar todos disso.
Nem mesmo sua futura esposa é fruto de algum esforço próprio — pretendentes são enfileiradas no seu quarto para que ele possa, criteriosamente, escolher a que mais lhe agrada e, como é de se esperar, nenhuma nunca alcança seu nível “imperial” de exigência.
Um dos seus afazeres do dia é ouvir as reclamações e pedidos dos moradores das vilas. Para ajudá-lo com isso, Kuzco tem uma conselheira chamada Yzma, uma senhora decrépita que, embora seja uma boa conselheira, está louca para apunhalar o imperador pelas costas e tomar o seu lugar.
Uma das pessoas que vai até o imperador, é o líder de uma aldeia, Pacha. O imperador fica contente em vê-lo e diz que tem uma coisa muito importante a ser tratada com ele. A grande questão que Kuzco tinha para falar com Pacha era a seguinte: Ele queria saber se o pico onde está localizada a aldeia é realmente ensolarado durante a maior parte do dia, caso fosse, o Imperador iria ordenar a construção de um resort no local.
Kuzco não tem interesse em saber onde Pacha e sua família irão morar, só pede para que ele pegue um formulário de troca de residência no caminho de volta. Tudo estava indo do jeito que o Imperador queria, o lugar realmente era ideal para seu resort e as obras poderiam começar já no próximo dia.
O que acontece é que, da mesma forma que Kuzco não liga para seus súditos e trata todos com desdém, sua prepotência e arrogância te cegam para os perigos que te rondam e, enquanto o Imperador festeja a construção do seu presente de aniversário, nos confins do palácio, Yzma e Kronk planejam uma vingança contra o Imperador.
Yzma, recentemente dispensada, sabe que ninguém está ciente da sua demissão e, com a falta de um herdeiro para o trono, o que ela precisava fazer o mais rápido possível, era se livrar de Kuzco para poder se tornar a mais nova imperatriz. Ela desce com seu comparsa para o laboratório e pega uma poção para envenenar Kuzco. Yzma planeja um jantar para propor uma suposta conciliação com o imperador.
Kuzco aceita o convite e é envenenado logo no início do jantar, porém a poção que teoricamente transformaria o imperador num inseto indefeso, acabou por transformá-lo numa lhama. A falta de atenção do Imperador é tão grande que seu corpo inteiro se modificou e ele nem percebeu. Aproveitando essa desatenção, Kronk bate uma tigela de metal na cabeça do “imperador lhama” e o desacorda.
A dupla esconde Kuzco numa sacola e Ysma ordena que Kronk se livre do corpo nos canais do palácio.
Chega então o momento que muitos esperavam: finalmente o imperador tóxico, egoísta e mimado iria para vala. Kronk joga Kuzco na correnteza, mas não consegue tirar os olhos da enorme cachoeira que vem pela frente.
Na teoria, era isso que ele foi fazer ali, era isso que sua “babá” havia ordenado e nada mais justo, não é? Matar um déspota que vive no luxo enquanto o povo sofre na pobreza… enfim, bons motivos para se livrar de Kuzco não faltavam, mas Kronk ao observar a morte realmente se aproximando, começa a ficar em dúvida e, num momento de impulso, salva o imperador no último instante.
Por ironia do destino, Kuzco termina na carroça de Pacha, o líder da tal aldeia. Ao chegar em casa cansado, Pacha abre a sacola e encontra uma lhama falante dentro dela. Os dois demoram um tempo a entender o que está acontecendo, até que Kuzco se dá conta que virou uma lhama e se desespera com sua aparência.
Pacha avisa que ele não pode voltar para o palácio sozinho, afinal o caminho é muito longo e uma enorme floresta, com jaguares, cobras e areias movediças, separa a vila do palácio. Pacha diz que se o imperador não mudar de ideia sobre a construção do resort, ele não vai ajudá-lo a voltar em segurança.
Kuzco deixa bem claro que não faz acordos com camponeses e segue seu caminho em direção a floresta. O imperador, literalmente, não tem ideia do perigo que corre, sempre esteve rodeado de soldados e servos resolvendo todos os seus problemas, logo, acredita que tudo seja muito fácil. É um tolo destemido.
No início, nada acontece, sua sorte acaba por confirmar sua ignorância: Kuzco começa a fazer piadas sobre a floresta em tom de ironia “Uhh… uma folha assustadora! Estou correndo muito perigo!” e reafirma a todo momento para si mesmo “Eu sou o imperador, não há o que temer, nasci com um senso inato de direção”. Porém, conforme o tempo vai passando e a floresta se fechando, Kuzco começa a perceber os perigos a sua volta e sua prepotência, aos poucos, começa a se tornar apavoramento.
Kuzco pode ser o imperador de uma civilização, mas existe um reino que ele, absolutamente, não governa, o único reino de verdade, o da selva. O reino que está para fora das divisas do palácio, onde todos sobrevivem um dia de cada vez. Onde não há luxos, não há servos, não há soldados, e, definitivamente, não há perdão, é a lei do mais forte e do mais esperto, quem só “come mosca” acaba sendo comido por algo maior.
Seu estado animal é poético, com todo respeito as lhamas, essa é a forma física da mentalidade do imperador — antes do feitiço existia um corpo humano numa cabeça de lhama preguiçosa, agora, corpo e mente estão na mesma “sintonia” e se o imperador deseja voltar a ser humano, terá que fazer isso não só fisicamente, mas mentalmente. Conseguir passar pela floresta, será apenas o primeiro passo de Kuzco-lhama em busca da humanidade que nunca lhe foi própria.
Como já era de se imaginar, a floresta seria um desafio muito árduo para o nosso protagonista lhama. Depois de se enfiar em várias enrascadas, fica encurralado por um bando de panteras selvagens e acaba sendo salvo por quem? Pacha, que deixou a questão do resort de lado e saiu a procura de Kuzco.
Depois de caírem numa correnteza e terminarem nas margens de um lago, Pacha faz de tudo para manter Kuzco a salvo, faz respiração boca a boca, começa a montar uma fogueira e deixa seu poncho com a lhama para aquecê-la. Kuzco acorda e nem agradece o esforço de Pacha, diz que se ele fosse obediente desde o início, nada daquilo teria acontecido.
Kuzco é cabeça dura, se nega a aceitar o pedido de Pacha, mas também não tem coragem de seguir seu caminho sozinho novamente, os dois então continuam juntos em direção ao castelo: kuzco falando asneiras sem parar e Pacha aguentando o fardo com a maior paciência do mundo.
Eventualmente, se vendo sem alternativas, a lhama diz ao seu companheiro de viagem que aceita mudar de ideia sobre o resort. Os dois dão um aperto de mão, mas Pacha faz questão de lembrar “Não aperte a mão, se não for para valer.”
Parecer um “vilão” é importante para a vaidade de Kuzco, ele precisa disso para se auto afirmar como alguém forte. O mau remete à algo sedutor para Kuzco, algo ligado a liberdade irrestrita, a uma falsa independência, a malandragem e a desobediência de regras que os reles mortais devem seguir.
Sua cabeça funciona assim: ser mau é ser independente, ser bom é ser subserviente. Ajudar Pacha ou qualquer outra pessoa em necessidade é uma vergonha, é algo que supostamente diminui sua grandeza. Qualquer tipo de doação ou sacrifício, por menor que seja, é sinônimo de fraqueza para Kuzco.
Após uma longa jornada, Pacha e o imperador mudam a trajetória e param num restaurante na estrada. Lá eles avistam de longe Yzma e Kronk, os dois que tentaram assassinar o imperador e que continuam a sua procura.
Pacha consegue ouvir os vilões conversando e descobre que os dois querem realmente assassinar Kuzco. Pacha conta isso ao imperador e qual a reação da lhama? Não acreditar.
Kuzco insiste que Pacha está ficando louco, diz para seu companheiro de viagem ir embora para casa, pois ele irá retirar o disfarce e voltará em segurança para o Palácio com Yzma e Kronk.
Pacha se irrita com a teimosia extrema de Kuzco e vai embora.
O imperador vai atrás da dupla de antagonistas e, escondido, consegue ouvir os dois falando sobre a tentativa de assassiná-lo.
Nesse momento, o mundo imaginário da lhama desaba, pois as duas pessoas que ele confiava, na verdade, eram traidores, e, a única pessoa que realmente se importava com ele, agora estava longe, voltando para sua casa nas montanhas.
Kuzco mais uma vez termina sozinho na floresta, passa por uma noite chuvosa e compartilha seus pensamentos conosco:
— Então foi assim… bem, é como eu disse, a vítima aqui sou eu. Não fiz nada. Arruinaram a minha vida e tiraram tudo que eu tinha.
— Dê um tempo, por favor.
— Por quê? Só estou contando a eles o que aconteceu.
— Está brincando? Eles viram tudo. Eles sabem o que aconteceu.
— Eu sei, mas, mas…
— Me deixe em paz, por favor.
A partir daqui, Kuzco decide, de uma vez por todas, mudar sua vida. Ele passa alguns dias no perrengue da floresta e encontra o caminho de volta para a aldeia de Pacha. Chegando lá, o imperador se desculpa com seu amigo, admite seus erros e os dois partem novamente para a aventura de encontrar a cura do feitiço.
Neste momento, Kuzco finalmente está preparado para voltar a ser humano, ou melhor, se tornar um humano. A “lhama” que vivia dentro dele, se foi.
Os dois acabam conseguindo se livrar de Yzma e encontram a cura. Kuzco volta para o trono, mas, desta vez, de forma diferente. A partir de agora, o povo não será mais governado pela lhama em corpo de homem, mas por um homem de verdade.
No fim das contas, o que Kuzco demorou a entender, foi que sua posição de poder não lhe concedia apenas privilégios — estar nela também implicava ter grandes responsabilidades, não só na gerencia do governo, na preocupação com o povo mas, principalmente, uma responsabilidade de adequar sua postura diante dos demais.
Como na maioria dos desenhos da Disney, um personagem secundário guia a redenção de um protagonista confuso. Na maior parte dos casos, essa dupla é um casal e o amor entre os dois faz com que um ajude o outro a superar seus dilemas, mas neste não, aqui o que está em questão é a pura amizade, é o amor fraterno que impulsiona a superação.
Daí podíamos nos perguntar então, por que o protagonista é o Kuzco? Que grande coisa ele fez além de se tornar uma pessoa minimamente adulta? Não teria feito ele apenas a sua obrigação?
A resposta é sim e não. Sim, ele fez apenas sua obrigação, mas existe algo extremamente fundamental em Kuzco: a vontade de mudar, por mais tardia que seja, ela é primordial.
Fundamentalmente falando, só duas coisas separam a “lhama” do humano: A consciência e a vontade de ser um humano. Ser humano não é ser perfeito, mas é, exatamente, aceitar a imperfeição e estar disposto a aprender com os próprios erros. A chave está na vontade.